Kathlen está ocupada. Muito ocupada. Parece que quase sempre, se a gente observa aquele vai e vem da moça: o sorriso, o abraço acolhedor, a criança no colo, a avó nos braços, os projetos para consertar a casa, a roupa que recolhe da máquina de lavar, precariamente instalada na rua. Kathlen parece ter energia condensada, pronta para ganhar o mundo.

Na manhã azul, o sol morno se espalha nas ruas planas e duramente cimentadas, sem árvores. O Rio Pavuna, lá ao fundo, está coberto de gigogas, denunciando a poluição. As casas baixas e juntinhas lembram uma vila do interior do Brasil.

Mas aqui é Vigário Geral, Zona Norte, a favela que marcou a história do Rio de Janeiro com uma chacina de horror, em 1993. A chacina que matou 21 pessoas expôs a fragilidade dos moradores e as condições de vida no lugar – uma comunidade em guerra com a favela vizinha, sem saneamento básico, sem rede de água, à beira de um rio poluído que enchia e transbordava, inundando as ruas e a vida do povo. Depois da chacina, Vigário Geral mudou e o olhar sobre as favelas mudou. Para melhor.

Mas e Kathlen? Ficou fora dessa história?

A moça lava roupa na rua, puxa água pra lá e pra cá, pendura lençóis e cobertores pesados, pingando água no varal estendido no quintal de sua casa. Quintal? Não, não é quintal. É uma outra coisa que nem à primeira nem à ‘segunda vista’ a gente consegue definir.

Aquele terreno cheio de pedras, entulhos, telhas quebradas representa uma das formas que Kathlen inventou para manter a família mais segura. Com tanto entulho, a água que brota do solo quando chove demora mais a subir, demora mais a alcançar a superfície, invadir a casa e colocar as cinco mulheres que vivem ali para correr. Acontece. E muito. Quando é assim, se abrigam na casa de algum vizinho, do jeito que for possível.

Nesta história, a palavra que sobe e esquenta mais a cabeça sob o sol é “impossível”. Não dá para acreditar que uma senhora de 75 anos, sua filha com 45 e as três netas – Kathlen, a mais velha, com 18 anos, Ariadne, de 14 e Natiele, com 11, com deficiência – vivam sob aquele teto, cercadas de paredes tênues, sem portas, sobre o chão de lama; sem sanitário, sem, sem, sem…

No outro dia, alguém entrou e ficou espiando, de um canto escuro, as mulheres dormirem. Dona Rosângela viu. Kathelin foi checar, mas a figura desapareceu muito rápido. Quem seria? Um ladrão. Roubar-lhes ainda o quê?

A cama, onde dormem parece úmida, inóspita como uma armadilha. Lá de dentro, o gato espia. “São os gatos que salvam a gente. Se não, os ratos invadiam. Por isso a gente alimenta os gatos. Um rato já mordeu minha mãe!”



Quem conta é Dona Rosângela Maria Rangel, que leva a vida a cuidar da mãe, marcar exames, correr atrás de remédios, controlar a glicose, aplicar insulina, num périplo que não tem fim. A filha mais nova tem uma deficiência, com comprometimento neurológico, também requer cuidados sem fim.

Dona Rosângela fala das dificuldades, humilhações, burocracia, mas afirma que não desiste. Até voltou a estudar, para facilitar a vida, e já estava na primeira série do Ensino Médio. Parou, porque a mãe fez uma cirurgia e ela ficou mais uma vez de plantão, cuidando. Mas vai voltar para a escola, sim. É essa sua determinação que mantém a saúde da mãe e da filha mais nova sob controle. Mesmo naquele lugar insalubre. A que preço?

 

Impossível, sussurra de novo o coração, como um mantra sofrido: im-pos-sí-vel.

Lá estão elas, inverossímeis, mas reais. E não dá para esquecer o verso de Milton Nascimento, já clichê, para falar deste tipo de mulher: “Marias que têm a estranha mania de ter fé na vida.” É isso?

A casa de Kathlen pertence à avó, viúva e diabética, que veio da Paraíba e casou com um fluminense, de Campos do Goytacazes. Moraram na Favela da Catacumba, na Zona Sul do Rio, removida em 1970. Foram reassentados, mas o marido “passou o apartamento” e acabou se estabelecendo em Vigário Geral, num barraco de madeira, transformado depois na casinha que hoje está em decadência. A única renda da família é a pensão deixada pelo falecido, um salário mínimo, para cinco pessoas.

O pai de Kathlen também morreu de “tuberculose galopante”, segundo Dona Rosângela, e nunca chegou a assumir a filha. As outras duas meninas são de outro pai.

Dona Rosângela não recebe nem os recursos do Bolsa Família. Passou um tempo em Belford Roxo e perdeu o direito ao benefício, mas todas as três meninas estão na escola. “O CRAS tá resolvendo isso pra mim, vou voltar a receber.”

Sentada ao sol, a avó observa a neta lavar roupa. A senhora está lúcida, mas quase inválida, e sofrida, e triste. Quando quer entrar em casa, pede ajuda a Kathlen para fazer o percurso de três ou quatro metros. E a cena de sofrimento da senhora acrescenta mais um toque de irrealidade àquela manhã.

 

E tudo é possível. Kathelin é possível.

Kathlen tem 18 anos, faz oficina de percussão no AfroReggae, cuida de duas crianças pequenas enquanto a mãe dos meninos trabalha; cedinho, às 7h, leva uma outra para a creche e depois vai buscar; também leva a filha de uma prima ao fonoaudiólogo. E prestando um serviço, fazendo seus “bicos”, Kathlen soma um dinheiro para as despesas da casa e para fazer as melhorias com que sonha.

Com o dinheiro que ganha, consertou a geladeira (que já estragou de novo), consertou a televisão, compra sacos de cimento para refazer o muro que já vai caindo, melhorar aquela janela quebrada, que não se pode abrir. Mas a casa está condenada pela Defesa Civil, desde fevereiro de 2011. Queriam levar a família para um abrigo. Não. Dona Rosângela não aceitou. Aluguel social? Sim. Mas demora, não tem prazo…

E Dona Rosângela não quer abandonar o terreno, a única propriedade que tem. Uma segurança, mas que coloca a todas em risco permanente. Ainda estes dias, Kathlen foi cortar o varal que estava preso a uma viga e a varandinha da casa desabou inteira. Bom, pelo menos mais entulho no chão.

Kathlen é a possibilidade. Tem talentos e é a “faz tudo” da casa. É pedreira, eletricista, babá, percussionista, estudante; é jovem, é moça bonita, que tira coelhos de uma cartola invisível para inventar a vida.


A vida da Kathlen depois do Doe Agora

A vida da Kathleen e de sua família chegou ao fundo do poço.

A vida começou a ficar insuportável e as respostas de mudança eram quase sempre as mesmas e sempre a mandavam esperar.

Mas esperar até quando?

"Até minha avó morrer" ou ate quando a casa acabar de cair?

Vieram fortes chuvas de dezembro de 2013 e a equipe do AfroReggae, por meio do DOE AGORA resolveu dar um basta naquela espera carregada de agonia, dor e lágrimas.

Alugamos uma casa segura para a família, compramos móveis e estruturamos a família que deixou uma vida marcada pelo medo de morrer pela imensa vontade de viver.

As fotos mostram muito o que ocorreu na vida da família.



É possível mudar vidas sim.

DOE AGORA.

Tem muita Vida para ser mudada.