“Eu procuro dar o melhor de mim, para mudar minha realidade. Mas é tão difícil! É tão ruim. Sabe aquele ditado que diz que uma andorinha só não faz verão? (…) Eu tô construindo uma casa nova dentro de mim, mas o que adianta se a casa em que eu estou pode cair em cima de mim e destruir ela?” Bruno

Uma palavra que todo mundo conhece: insegurança.

Quem nunca sentiu? Principalmente nos grandes centros urbanos, nas cidades com altos índices de violência, como o Rio de Janeiro, nos bairros das regiões menos privilegiadas pelo poder público, como a zona norte.  Nas favelas.  Fechou o foco?

Pois ajuste melhor seu olhar para conhecer a família de Bruno, que mora em Vila Cruzeiro, numa casa no meio de milhares de outras casinhas que se erguem encostadas umas às outras, dividindo paredes úmidas, manchadas, tristes até.  Por que mesmo o sol tem dificuldade de chegar até as vielas apertadas que parecem reeditar um passado medieval que o Brasil nunca viveu.  Vive agora.

Na casa moram o pai, com 67 anos, a mãe, 54, Bruno, 22, um irmão mais novo e um dos irmãos gêmeos, caçulas de 18 anos.  As crianças são três sobrinhos, dois a avó cria e o terceiro mora com a mãe, mas passa os dias com a avó.

Bruno fica um pouco tenso com a visita.  As mãos geladas e o olhar procurando pouso, inquieto. Está nervoso porque vai mostrar a casa em que vive e que é o motivo de suas preocupações. Tem vergonha da situação precária da morada, mas quer superar isso e pedir ajuda, sim.

É só um jovem que como todos querem futuro, acreditam piamente em verdades efêmeras, têm sonhos.  Quer amar, ter amigos, viver aventuras, ter sucesso.  Mas o mundo de Bruno é inseguro e pode desabar sobre ele a qualquer momento.  Literal e simbolicamente, porque as fragilidades são muitas, como a escada de madeira – uma escada de pedreiro feita por eles mesmos, com degraus irregulares, meio quebrados -, que separa os andares da casa. Não é fácil encarar.  Ou como a condição do pai, que depois de um acidente vascular cerebral ficou frágil, infantil, inválido.

No meio das fragilidades, Bruno vai à luta, guerreiro, com uma alma voltada para a música, a beleza, a arte.  Concluiu o Ensino Médio e é monitor de dança do Programa Mais Educação, numa escola municipal do Rio.  O programa é do governo federal e oferece atividades em diversas áreas, ampliando a jornada escolar.

Bruno aprendeu a dançar no Espaço Ibis, uma ONG local.  Mais tarde entrou no AfroReggae, no Núcleo da Grota, Complexo do Alemão.  Agora, faz oficina de dança urbana no novo núcleo, em Vila Cruzeiro.  Street Dance é do que gosta.

Trabalha também na organização de festas de 15 anos.  Monta coreografias para a debutante e suas daminhas, organiza a festa.  Enfim, um cerimonialista em construção, que pode ter uma boa carreira pela frente.  Ele é animado, gosta de participar de tudo, se destaca nos grupos de que participa. Mais do que tudo é um sujeito pró-ativo, empreendedor, interessado no que pode dar certo. Cheio de vida.  E de problemas.

 

 A insegurança paterna

“Eu queria ter nascido filho único, quem sabe a minha vida seria diferente?”

O pai de Bruno nasceu em Minas Gerais e foi criado num orfanato com os irmãos.  Bruno conta que os quatro irmãos organizaram um esquema de fuga.  O primeiro que fugiu voltava para resgatar os outros.  Vieram para o Rio e se estabeleceram em Vila Cruzeiro.  Uma irmã, a única menina, se perdeu dos meninos, levada para Minas pela senhora que assumira os cuidados da pequena enquanto os irmãos trabalhavam.

Mas tem a história bonita segundo a qual, anos depois, esta irmã reencontrou os irmãos depois de uma longa procura. Um enredo bonito e que, de alguma maneira, consola Bruno, dando coloridos dramáticos e redentores à vida da família.

dentro da casa1

O pai, no Rio de Janeiro, se casou com Dulcinéia, moradora do Complexo do Alemão.  Com casa estabelecida em Vila Cruzeiro, a família cresceu.  São oito filhos, finalizando uma “escandinha” com os gêmeos, caçulas, agora com 18 anos.

Dulcinéia é analfabeta, mas tem uma pequena pensão do primeiro companheiro, que é a salvação da família.  Bruno ajuda com o dinheiro que ganha com a monitoria de dança, com as festas de debutantes, com a bolsa do AfroReggae.

O pai, Seu Edinísio, depois do

AVC, ficou meio atordoado, mais lento. Já não é o mesmo.  Um pouco esquecido e com um comportamento infantilizado – obedece cordato a tudo que lhe mandam fazer e Bruno sabe que nunca foi assim.  Conta que o pai sempre foi um sujeito conservador, rígido ou talvez até frio.  De qualquer modo o jovem está marcado pela ausência de carinho, diálogo, afeto.  Mas como poderia ser diferente, se a própria história do pai é também árida?

 

E, agora, Seu Edinísio nem sequer é chefe de família – não tem renda, não tem poder de mando ou contribuição, se ausentou, mesmo presente. Vive ali pela casa, se virando como pode numa espécie de bruma em que ficou mergulhado depois do derrame.  Ele está em busca de uma aposentadoria por invalidez, mas a burocracia é complexa e em seus labirintos a família se perde, se cansa e acaba desistindo por total incapacidade de enfrentar o Estado e suas razões.

 

A mãe é muito limitada.  Nunca trabalhou, não saber ler, nem fazer contas e também não foi muito carinhosa, não. Bruno é quem resolve “as coisas” com ela. Faz compras, vai ao banco tirar dinheiro e ajuda também a pagar as contas e a comprar alguma coisa para casa. E já desistiu de esperar da mãe algum tipo de atitude mais empreendedora ou pró-ativa.  Assumiu – mesmo sem autorização de pai ou mãe, e mesmo que ele mesmo saiba – o papel, que ficou vago, de chefe de família

 

 

Ajuste o foco

E aquela casa? E a solidão que afinal sente?

A casa onde moram já foi interditada pela Defesa Civil.  Não à toa.

quarto 2

A construção é obra e criação do pai de Bruno, que foi, antes de sofrer o AVC, trocador de ônibus e vendedor de bujões gás na favela.   De arquiteto, engenheiro ou mestre de obras, Seu Edinísio  não tinha nada.

Mas, decidido a criar espaço para acolher filhos e netos, resolveu ser construtor e viu na casinha térrea, de estrutura frágil, a base para erguer seu castelo.  História, aliás, de quase 100% das construções nas favelas cariocas.  Muitas vezes, com a ajuda de um currículo de pedreiro ou mestre de obras nas empresas de construção civil, o projeto pode dar certo e a casa se ergue segura, estruturada.  Mas tantas outras vezes a coisa nã

o funciona como o planejado e se ergue a casa torta, vulnerável, perigosa.  O Rio de Janeiro tem em sua história inúmeras cicatrizes de desabamentos e acidentes com muitas mortes.  Culpados?  Poder público, mas também moradores, que sem ter alternativas de moradia, inventam armadilhas para si mesmos.

E o pai de Bruno foi ousado.  Ergueu até um quarto andar, um terraço onde a família seca a roupa, mantém a caixa d’água e tem uma vista privilegiada de toda a favela e da Serra da Misericórdia, ainda verdinha.

quarto

“Como foi fazendo um monte de filhos, ele foi construindo”, narra Bruno.  Ele lembra que como a maioria das casas da favela não tem emboço também, ele achava que a sua casa inacabada era normal, tudo “assim mesmo”.  Mas depois começou a perceber que havia alguma coisa errada; viu que a água da chuva encharcava as paredes, que ficavam com esponjas.  Chovia no seu quarto.  O terraço já balançou, jura Bruno.  E daí chegou o medo da casa cair.

A família recebeu uma interdição da Defesa Civil, que mandava demolir o terraço e o terceiro andar, onde ficava o quarto de Bruno. Podem reformar a casa de baixo, mas é preciso demolir toda a parte de cima, o antigo quarto de Bruno inclusive.  Hoje, dormem todos no quarto da mãe e do pai.

 

 

Mas ainda é preciso sonhar

Apesar de “sempre ter escutado muito não”, Bruno ainda tem sonhos.  Qual o maior deles?

“O maior sonho era dar um conforto para os meus pais.”

terraço condenado

E pronto, ao acessar o sonho, é ele quem desaba, afinal, e começa a chorar, delicadamente, com lágrimas que vão brotando sem contenção, por mais que o menino se esforce para evitar o choro, cobrindo os olhos com dedos longos, as unhas cintilantes. “Eu sempre tive vergonha de receber meus amigos aqui. Até mesmo de compartilhar, de poder ir na casa dos amigos, e eles virem aqui.  Me dá vergonha. E é complicado.  Se eu, que moro aqui, não me sinto seguro, vou trazer meus amigos para um lugar que não é seguro? A primeira pessoa que eu recebo na minha casa é você.  E eu me sinto triste.”

Bruno tem mais inseguranças, outros medos. Medos comuns de quem vive em áreas de tráfico de drogas, de conflitos com a polícia, mesmo com UPPs, novos acordos comunitários.

E fica na cabeça a pergunta se pode ser tranquila a vida sob um teto prestes a desabar; sob a privação de uma moradia digna e segura; sob uma casa com tantas pessoas, mas sem diálogos, cooperação, solidariedade.  É possível sonhar sem privacidade, dividindo quartos minúsculos com pais, irmãos, sobrinhos, enquanto no armário vazio, lá no quarto condenado, as fotos dos Rebeldes falam de um mundo colorido, musical, seguro e perfumado?